revista “convocarte” nº 14/15: arte e mobilidade: eppur si muove! / ART AND MOBILITY: Epur si muove! / ART ET MOBILITÉ: Epur si muove! — chamada de trabalhos
Apresentação e lançamento da versão digital prevista para fevereiro 2024 | Presentation of the digital due in February 2024 | Présentation et sortie de la version numérique prévus pour février 2024.
Arte e Mobilidade: Eppur si muove! [PT]
Eppur si muove ou E pur si muove, normalmente traduzido como «mas movimenta-se» ou «no entanto ela move-se», é uma frase que se atribui a Galileu Galilei. Polemicamente, e segundo a tradição, ela terá sido afirmada logo após Galileu renegar a visão heliocêntrica da Terra perante o tribunal da Inquisição.
Além da retórica da expressão, que faz um tropos ao que se acabara de renegar, invertendo o seu sentido, ela tem esse cunho de nos dizer que a estaticidade é um limiar impossível ao ser humano, porque estamos sempre em movimento. Também, e para além da ironia actual da expressão, na saída de uma situação global de confinamento, que nos obrigou à imobilidade, a expressão surge com uma força cultural de resistência, de recusa da imobilidade nos seus impedimentos e restrições aos corpos e aos objetos, para assim nos lembrar a força de resiliência da fala, da acção ou da coragem.
Se este apelo à mobilidade tem esta tradição de coragem deontológica na história da ciência, servindo de exemplo a manutenção de princípios apesar de violentas pressões externas em sentido contrário, facilmente lhe encontramos toda uma espessura cultural nas artes. A mobilidade pode assumir um primeiro grande plano da deslocação do artista, busca por novas influências e formações que ampliem os horizontes da sua capacidade de produzir Arte.
A aceleração da dinâmica e tensão dos ismos, que marcam a arte ocidental desde a entrada na era industrial, não prescinde da relação com outras possibilidades de deslocação, mais rápida e de constante aceleração. Tal permite pensar que a relação entre os movimentos da história e os da deslocação do espaço geográfico estão relacionados. A mobilidade implica a conjugação do espaço e do tempo, mas também mobiliza rupturas.
Mas, não se trata de fenômeno novo. Muito antes da revolução industrial e das facilidades da aldeia global, conectada no instante da velocidade da luz da Internet, sempre houve viagem na Arte, permitindo a troca e partilha de objectos artísticos, como das suas técnicas e estilos. A história da arte é um vasto mapa de viagens de contatos artísticos, de deslocações de artistas e obras, que transportam consigo uma partilha de influências. Impossível, assim, separar o movimento de artistas e obras que se tem dado ao longo do tempo, pois tudo isso se liga aos próprios movimentos da história da arte.
Mas, se a ênfase à mobilidade não se dá como fenômeno novo, o momento contemporâneo amplia a dimensão e velocidade das mobilidades já presentes nas culturas Paleolíticas, Mesolíticas ou Neolíticas, ou nos nomadismos dos povos primevos das Américas, África e Oceania. Há múltiplas possibilidades de abordar o problema das culturas itinerantes nos dias que correm, cuja lógica artística e cultural assenta na disponibilidade constante ao móbile.
Agente crucial na questão da mobilidade nas artes é o próprio artista. O artista em viagem amplia a sua experiência e conhecimento. O viajar, como prolongamento da sua formação, é decisivo sobretudo a partir da Era Moderna e com o espírito do artista culto do Renascimento. A deslocação pode servir para uma formação e crescimento de si, como pode trazer consigo rupturas, ser exílio, voluntário ou involuntário, político ou artístico, dimensões que têm marcado a história das civilizações.
A deslocação pode dar-se por razões de um projecto artístico, como o caso do ar livrismo, que determinou uma das questões mais relevantes da história da pintura do século XIX, culminando num dos movimentos artísticos mais míticos da arte moderna, o Impressionismo, sobretudo com o ar livrismo total de Monet. Ou, mais recentemente, as derivas dos situacionaistas ou as caminhadas de Richard Long no âmbito da Land Art ou, enquanto acção artística, a famosa deslocação de uma montanha de Francis Alÿs, obra com Cuauhtémoc Medina e Rafael Ortega (When Faith Moves Mountains, 2002), entre muitas outras.
Nesse dossiê temático, propomos uma profunda reflexão sobre a viagem nos estudos artísticos das Artes, desde a noção de artista viajante, com seu diário de viagem, o ar livrismo e as residências artísticas, ou seja, da viagem como fundamento ou processo artístico. Também interessam as relações entre as instituições artísticas e a viagem cultural como mercado, enquanto dimensão turística da arte, lançando a discussão entre a necessidade de visita e a criação artística. Tal como há um turismo do artista, mesmo pondo em jogo os estigmas desta palavra enquanto modo de viagem, há um alargado e intenso turismo da e para a Arte, motivando e mobilizando deslocamentos.
Problematizar a mobilidade chama tanto o seu excesso e poluição (por exemplo, a noção de «dromologia» de Paul Virilio), como a ideia de imobilidade, extremos necessários à discussão do que os deslocamentos assinalam no mundo da arte. Além das ditas artes do tempo, como a literatura, a performance, o cinema ou a música, também as artes plásticas, ditas do espaço, se implicam no movimento, com vários artistas a entrarem na mobilidade dos referentes, como Delacroix, Degas, Rodin, os futuristas ou, por outra via, o próprio cubismo, com a sua ideia da deslocação do artista em torno do referente. O movimento torna-se assim um tema ou problema para a representação. Mas também pode ser um problema construtivo da obra, permitindo estender a questão às obras cinéticas, reais e virtuais, do construtivismo russo à Op Art.
A mobilidade encontra-se como questão cultural abrangente, como deslocação dos seus agentes (desde dimensões da produção, a partir do lugar do artista, como da recepção, e em torno do lugar do observador) e toda a partilha cultural daí advinda, como pode ser uma questão da obra, da sua deslocação física, seu tema ou modo de relação com os seus motivos, como ainda da sua construção interna.
Portanto, fica claro a necessidade de uma resposta a esse interesse investigativo e criativo, tanto da comunidade acadêmica quanto artística, que por diferentes perspectivas consubstanciam arte e deslocação, numa relação profícua. Assim, propomos como desafios à reflexão, algumas temáticas:
– A velocidade, viagem e mobilidades nas artes.
– O artista viajante e em deslocação, das peregrinações, às missões artísticas, ao ar livrismo, ou às recentes residências artísticas.
– As residências artísticas como jogo deslocação e possível fixação temporária, desenhando cenários e impactando a [re]criação artística.
– Deslocações por exílio, migrações e outros caminhos pós-coloniais
– Projectos artísticos assentes na ação e na mobilidade, implicando a deslocação.
– A deslocação de colecções e obras, em exposições ou saqueadas historicamente.
– Obras e coleções em deslocações: o artístico tornado evento.
– Percursos artísticos no mundo do eu, enquanto artística, curador, espectador, etc.
– A mobilidade cultural dos processos artísticos, sobretudo no espírito da arte moderna e contemporânea e sob o signo das vanguardas artísticas.
Mas, dentro do princípio Eppur si muove, a proposta abre-se ao acolhimento de outros possíveis desafios. Pode-se ensaiar sobre o contraponto aos impedimentos de mobilidade, aos processos, impositivos ou não, de imobilidade, como o recente caso global da pandemia do Covid 19. Porque: Eppur si muove