paula rego 1935 – 2022
© Artur Lourenço
PAULA REGO 1935-2022
A Presidência da FBA solicitou à Professora Catedrática de Pintura o seguinte texto evocativo do falecimento da Pintora Paula Rego, que subscrevemos.
São conhecidas imagens do atelier londrino onde Paula Rego trabalhava há décadas, com as coisas que ali se animavam sob o seu olhar, sopro e mãos: cavaletes, mesas e bancos, estrados, materiais, sobretudo obras concluídas e em curso e ainda aqueles inesperados bonecos de pano, por vezes algo monstruosos, que ela fazia e que lhe serviam de modelo.
Tudo isso fica, agora, como que numa espera sombria, quando Paula Rego já ali não está.
Para trás no tempo, há 87 anos de vida e cerca de setenta de produção pictórica, desde que, nascida em Lisboa, Paula foi para Londres estudar em 1952, terminando a Slade School of Fine Arts em 1956. Com o pintor inglês Victor Willing viveu em Portugal de 1957 a 1963, na Ericeira. Depois disso, a família com três filhos (Nick, Caroline e Victoria), por vezes enfrentando dificuldades financeiras, alternou entre Portugal e Inglaterra até se radicar em Londres em 1976.
O meio artístico londrino e a Escola de Londres foram determinantes para o amadurecimento de um certo olhar figurativo simultaneamente sólido e livre, dotado de maior distanciamento e mundividência. E houve apoio à carreira de Paula Rego como pintora por parte da Fundação Gulbenkian, através de bolsas, uma ainda nos anos 60 e outra novamente nos anos 70, neste caso direcionada para o estudo de narrativas populares portuguesas.
Paula dava curso à atenção, que de resto foi mantendo, sobre as realidades nacionais, sociais e políticas. E nesse olhar crítico ia usando principalmente a colagem de elementos pintados previamente, como meio que permitia mecanismos associativos ilógicos, intuitivos ou inconscientes no processo de desconstrução e descontextualização das imagens e referências, canalizando a liberdade do discurso gestual, expressivo e vagamente surrealista.
Foi nos anos 80 que o sucesso veio para ficar. Em 83, Paula foi professora convidada na Slade e em 88, ano em que faleceu o marido, expôs na Serpentine Gallery. Já sem a fragmentação da colagem, a pintora assumiu então mais claramente a força telúrica do desenho e da cor, em registos de figuração muito livre e descontraída com alguma dimensão autobiográfica. Mais tarde, a necessidade narrativa invocou maior tradição construtiva académica em trabalhos a pastel, a partir de modelos vivos.
Já não se tratava de fundir o pessoal com o local naquilo que, muito estritamente, poderia aliar a estranheza ao exotismo em pinturas de forte presença plástica. Quando a representação coreografou temas da condição das mulheres e, um após outro, os seus espaços, temas e problemas (como depois o aborto e excisão), Paula veio engendrar narrativas com fundo e sentido indiscutivelmente universal: humano, emocional, crítico, cómico por vezes, político. E, ainda por cima, isso era dado em boa pintura, bem arrancada, quase apolínea, de excelente sentido cromático, paradigma específico resistente.
Assim, também o mundo se abriu para a sua obra.
Nas suas fases sucessivas, em trabalho de grande permanência, Paula Rego foi aprofundando diferentes vertentes da figuração em temáticas da realidade social e da cultura, desde as criaturas híbridas informes e viscerais aos retratos reconhecíveis (dos filhos, da sua assistente Lila, de amigas e amigos, do presidente português Jorge Sampaio, por exemplo, em 2005), às situações mais alegóricas e críticas (por exemplo a Primeira Missa no Brasil, de 1993), e até a temas associados a uma paradoxal fé católica, pretexto de recente exposição na Casa das Histórias. Observadora e participante do seu tempo, criadora de histórias nunca fechadas, fez da narrativa pictórica um modo contemporâneo de pensar, de colocar questões e hipóteses, chamando para o terreno da pintura a literatura (de Esopo a La Fontaine, de Eça de Queirós a Orwell ou Genet e Kafka, Brontë e Rhys), o cinema e a banda desenhada (por exemplo Walt Disney ou Little Nemo), a música (Verdi, entre outros), tanto pela leitura de textos e obras como por memórias de narrativas orais, juntamente com informação oriunda dos media e a sua própria vida.
Visualmente, nos seus quadros ecoam Manet, Gauguin, Ensor, Dubuffet, Gorki, Sutherland, Klossowski e Mapplethorpe, mas também Antonello da Messina, Ticiano, Velázquez, Philippe de Champaigne, Hogarth, Goya, sem esquecer os azulejos portugueses do século XVII que marcam a imagem de O Jardim de Crivelli (1990-91).
Salazar a Vomitar a Pátria (1960), Coelha Grávida a Contar aos Pais (1981), Proles Wall (1984), a série do Crime do Padre Amaro (1998/99), La Fête (2003), Human Cargo (2007-2008), ou ainda os diferentes Pillowman, são apenas mais alguns casos de obras que mostram, em tempos diferentes, o génio de Paula Rego, cuja pintura absorveu o que ela viu, ouviu, leu, sentiu e pensou.
Artista plenamente reconhecida, recebeu inúmeros prémios, condecorações, honrarias. Entre eles, está a concessão do doutoramento honoris causa pela Universidade de Lisboa em 2011, que tivemos o gosto de propor em nome da Faculdade de Belas Artes.
Obra que fala do mundo em devir, contemporânea sem qualquer dúvida, quis algum anjo que Paula Rego estivesse presente na Bienal de Veneza deste ano precisamente com a sua série kafkiana quando, na vida e na realidade em metamorfose, mal se distingue um estaleiro de obras de uma cidade em ruínas. Apropriada e premonitoriamente, ali está agora, sob os holofotes, um lado sombrio da pintura de Paula Rego, que ela própria nomeou uma vez como algo “black, black, black”.
Estamos, assim, de luto.
Dirão os factos da matéria das coisas que ela já não volta ao atelier.
Diremos nós: Ou será que ali continua, pelo meio de tudo, e em tudo o que foi fazendo?
Isabel Sabino
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