natura, naturans
04 > 30 JULHO I GALERIA BELAS-ARTES
Inaugura no dia 4 de julho, às 18h00, na Galeria das Belas-Artes, a exposição Natura, Naturans de Dora Iva Rita, com curadoria de João Paulo Queiroz. A exposição ficará patente até 30 de julho.
FINISSAGE – 25 JULHO | 18h00
horário schedule
2ª a 6ª › 11h–19h
monday to friday › 11am to 7pm
Informamos que este evento poderá ser registado e posteriormente divulgado nos meios de comunicação da instituição através de fotografia e vídeo.
Da Natura Naturans à coisa acabada
1. Modos
Vejo os objetos ambíguos, e por isso ‘valentes’ de Dora Iva Rita, e penso como eles se completam no meu olhar, já longe do seu fazer. O olhar pousa, o meu como o teu, e neles pode descobrir estas coisas.
Talvez reler um pouco de Espinosa que, na sua Ética, pode auxiliar a apreender a contradição que segue encerrada nas coisas, todas, e também afinal no campo a que chamamos arte.
A arte forma-se só fora do útero, já longe das mãos do artista. A arte só é depois dos outros, com o tempo, depois dos olhares, das lembranças, das recordações, e concretiza-se talvez de modo mais definitivo já depois de sair das mãos do seu autor, para ganhar a sua identidade e o seu efeito quando se insere na teia relacional, social, simbólica: são afinal os outros, que não os artistas, que transformam a coisa em arte.
Dito de outro modo, a arte parece ser um ‘modo’ social de uma substância potente que pode ser simbólica. Afinal a arte pode ser um indício, uma modalidade, uma ocorrência, da vasta valência, na qual o simbólico é um modo, que se esconde e em que se transforma o mundo.
2. Coisa acabada
Da possibilidade à coisa, da potência à ocorrência, estabelece-se uma tensão fundamental: a coisa dita opõe-se à possibilidade de dizer, à arbitrariedade da escolha, à modalização da substância. A arte cumpre-se fora do atelier, e só existe enquanto relação. Essa relação, interpessoal, simbólica, pressupõe uma possível substituição, ou melhor, uma representação fundamental. Aqui estamos mais próximos da Natureza Naturans, da possibilidade substancial, antes da definição da ocorrência, do encerramento, e da coisa acabada, Naturata.
Mas a quem cabe a convocatória inicial, a chamada? Pergunto, já a caminho, e no meu caminho.
João Paulo Queiroz, maio 2019
LABORATÓRIO
(NATURA NATURANS)
Entende-se a oficina como um laboratório e o processo artístico como uma forma de pensamento e gnose, onde a forma recondensa e funde outros entendimentos da génese dos mundos e onde dissolver e solidificar são operações básicas da cognição. Quando abordamos a alquimia fazemo-lo numa perspetiva filosófica, na tradição dos muitos pensadores que estão, naturalmente, refletidos neste nosso trabalho. A grande maioria dos tratados conhecidos são ilustrados com aquilo que por vezes é designado por emblemas e que facilitam, ou por vezes disfarçam, a compreensão daquilo que é descrito em palavra. Facilitam e confundem. Palavra e imagem têm um registo simbólico, analógico e velado (ELIADE, 2000). Mas, não obstante a irreverência de querer dizer não dizendo ou desdizendo, a alquimia foi adquirindo determinados padrões iconográficos como se fosse construindo uma linguagem própria que encaminha para as práticas celebradas ou concelebradas (ROLA, 1998).
Na tratadística alquímica as substâncias, sejam elementos minerais puros ou compostos, sejam elementos vegetais ou animais, unem-se por analogias qualitativas ou comportamentais e são sempre tomados como entes (JUNG, 2011). Entes que interagem purificando-se, complementando-se, ou mesmo anulando-se. Estas inter-relações são racionais e intuitivas numa profunda construção do sentido e do sentimento (BARUCH, 1990) e da própria essencialidade do se ser completo e vivente.
Mas é a capacitação narrativa do têxtil e a sua ancoragem nos mitos fundadores o que permite plasticidade e uma facilitação introspetiva a esta amálgama perceptiva que se desenvolve como “matéria-prima” do trabalho que agora se mostra.
E se aqui entendemos filosoficamente a alquimia também nos dirigimos do mesmo modo para o têxtil. Trabalhamos o têxtil enquanto conceito básico do mundo, estrutura da matéria do universo e da sua percepção. Sustentabilidade como integração do singular no múltiplo, das mensagens culturais antigas no nosso momento, da criatividade do pensamento como inteligência, do conhecimento e respeito por si próprio como dignificação do Outro, da possibilidade consciente de tecer transcendências (JUNG, 2009).
Têxtil e alquimia misturam-se em cada trabalho com realce ora para um ora para outro mas sempre num registo de sustentabilidade cultural no sentido mais humilde que ela tem, o do trabalho individual em benefício do ente universal.
Atravessamos momentos em que a globalização se indefine quanto ao rumo por onde hão de enveredar linhas de força opostas: uma no sentido de encontrar um equilíbrio sustentável para 99% da população mundial (tomando mão da divisa do movimento Occupy), com uma organização democrática e polifacetada complexa, imaturamente perceptível em frágeis compromissos ratificados nos encontros de líderes mundiais, protocolos, acordos de princípio, quotas/limite, onde ainda existe muita margem para países não-alinhados; outra força, aparentemente bem enraizada nos bastidores da política mundial, arrebanhando os ministeriáveis mais subservientes, gananciosos e servis, corre ameaçadoramente num sentido contrário à Humanidade, robustecendo compulsivamente a plutocracia de 1% da população mundial, através de uma anosognosia sobre a consecução da hegemonia sobre todos os outros, através da sensação de impunidade por direito moral próprio [anosognosia é a ausência de consciência da própria condição, um sintoma de diversas doenças neurológicas, definido como tal em 1914 pelo neurologista Joseph Babinski (1857-1932)]. Entre esta luta de ideias sobre como construir mundos, as enormes assimetrias vão-se mantendo até que haja a tomada de consciência global de que cada ente é parte deste planeta, de que qualquer parte é parte desse todo, havendo que respeitar por igual qualquer das partes para que exista uma sustentabilidade do todo.
Urge encontrar recursos que consigam equacionar estes problemas ideológicos, sociais, ambientais e geopolíticos de forma a tornar manifestas trajetórias tendentes a que se desenvolvam sociedades mais igualitárias, pacificadas e sustentáveis. Mas os mecanismos existentes, que até agora têm assegurado alguma democracia dos sistemas sociopolíticos, estão ameaçados pelo desgaste dos seus princípios, pelo que se torna necessário agir claramente, com conhecimento e em uníssono, com o fim de criar referenciais fortes e verdadeiros que ancorem a consciência dos povos, dentro da confusa e asfixiante teia global onde nos inserimos, e façam convergir o sentido do mundo global para sociedades mais sustentáveis, justas e livres. Para isso teremos de proceder como sempre se procede em épocas de crise de identidade, confusas e com a consequente perda de consciência própria: olhar por dentro, reconhecer padrões ancestrais, refletir sobre outros modos e processos de fazer mundos, reconhecermo-nos no mito e reabsorvê-lo para, então, depois se projetar e criar com bases consequentes e não manipuláveis por vícios plutocráticos. A sustentabilidade é um sistema em rede em que nada está isolado, por isso o nosso entendimento da sustentabilidade se liga ao de textilidade no encontro de um novo caminho ideológico planetário. A semelhança estrutural entre a sustentabilidade e a matéria têxtil e a relação desta com os mitos fundadores, nesta exposição refletidos através da alquimia, levam-nos a sublinhar a importância da arte têxtil neste contexto. Para haver reconversão sustentável das sociedades há a urgência de criar através da arte, pois a arte criada estabelece pontos por onde emergem sinais vitais de um inconsciente coletivo (JUNG, 2011) que atua como referência transferida para a atualidade da obra. O têxtil encontra-se aqui numa posição privilegiada na comunicação dos paradigmas mitológicos essenciais e geradores, possibilitando uma apropriação metodológica quando usado como matéria galvanizadora da obra. O envolvimento estrutural na ética da sustentabilidade (BARUCH, 1990) permitirá a um mundo doente um processo evolutivo coerente com um sentido universal, reconstruindo-se como um verdadeiro todo, identificado pelas diversas partes, cada uma delas tão inadiável e importante quanto as outras. E isto poderá ser percepcionado através da arte têxtil, que, por inerência, transporta em si as sementes da cura. Criar cura e viver a arte liberta, pacifica e consciencializa o verdadeiro lugar geométrico do ser no universo.
BARUCH, Spinoza, Ética. Lisboa, Relógio d’Água, 1990. ISBN 972-708-166-5
ELIADE, Mircea, O Mito da Alquimia. Lisboa, Fim do Século, 2000. ISBN 972-754-155-0
JUNG, Carl Gustav, Psicologia e Alquimia. São Paulo, Vozes, 2011. ISBN 978-853-264-131-1
JUNG, Carl Gustav, Red Book. Liber Novus. Nova Iorque, Ww Norton & Co, 2009. ISBN: 978-039-306-567-1
ROLA, Stanislas Klossowiski de, Le Jeu d’Or – Figures hiéroglyphiques et emblèmes Hermétiques dans la littérature alchimique du XVII siècle. Londres, Thames & Hudson, 1998. ISBN 2-87811-134-6
Dora Iva Rita, 2019