revessa
11 > 26 ABRIL I CAPELA BELAS-ARTES
Inaugura no dia 11 de abril, às 18h00, na Capela das Belas-Artes, a exposição Revessa de Viviane Gueller, com curadoria de João Paulo Queiroz. A exposição ficará patente até 26 de abril.
horário schedule
2ª a 6ª › 11h–19h
monday to friday › 11am to 7pm
Informamos que este evento poderá ser registado e posteriormente divulgado nos meios de comunicação da instituição através de fotografia e vídeo.
Viviane Gueller: no cais, junto ao rio
1. Viagem
Viviane Gueller empreendeu uma viagem. Esta viagem começou do outro lado do mar, do outro lado do Atlântico, junto à foz do Rio. É uma viagem de ida e de regresso, é uma viagem de gerações que procuram, constroem e regressam.
2. Quintal
Almeida-Garrett no livro ‘Viagens na Minha Terra’ descreve uma outra viagem, bem mais pequena. Depois da independência do Brasil o país ficara do tamanho de um quarto. Quarto que lhe recorda o outro quarto, o da prisão domiciliária de Xavier de Maistre, no livro ‘Viagem à volta do meu quarto’. É que Garrett sabe, e percebe, que as outrora caravelas, saídas de Lisboa para destinos maiores e incertos, tornaram-se em pequenos barcos, com destinos pequenos, e certos. Agora sobem o rio, em vez de atravessarem o Atlântico. Almeida-Garrett sobe o rio Tejo, entre amigos dos tempos de Coimbra, da Universidade!, a caminho do novo Ultramar que é agora, rio acima, a cidade de Santarém, ironia mais pequena:
Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até ao quintal. (Almeida-Garrett, 1846:1-2).
3. Estige
No Renascimento um outro autor descreve na forma de um rio, a última viagem, a viagem em direção ao paraíso ou em direção ao inferno. Seria no cais do Estige, ou, para Gil Vicente, num simples Cais do Tejo. Falo aqui do Auto da Barca do Inferno (1518). O cais onde chegam os mortos, crentes que as suas grandezas de vida lhes garantem os maiores confortos a caminho do certo Paraíso. O barqueiro trata-os com ironia, e são encaminhados para o seu justo destino, uma das duas barcas, uma a caminho das brasas infernais, outro a caminho do céu. São aliás dois os Barqueiros. Um, um anjo, o outro, um diabo. Entre frades, banqueiros, alcoviteiras, procuradores, e outros pretensiosos, só serão recebidos pelo anjo os cavaleiros, homens de missão distinta e nobre, homens de grandeza, e mais um, um homem simples, que é Joane, o pobre de espírito, o parvo.
4. Um bilhete rasgado nas mãos
Falamos então de viagens, falamos então de peregrinações. O mesmo é dizer caminhadas em busca do espírito. Não está ao nosso alcance descrever, discernir, compreender. O seu motor é exterior e é superiormente determinado. Uma peregrinação é ela mesma a viagem, é ela mesma a metáfora da duração da vida. Pois começa, dura, e acaba. Ao final, saberemos o seu proveito, a sua fatalidade, o seu sentido. Ao final, um encontro no cais. Ao final, a travessia do Tejo, seja Rio acima, seja Atlântico abaixo. Viviane começou esta viagem há muito tempo, antes ainda de saber que estava a caminho. Isto não é novidade: acontece a todos nós. Só a meio da viagem percebemos que temos um bilhete rasgado nas mãos.
5. Peregrinação
A viagem é em si mesma uma ironia, mais do que uma alegoria. Uma ironia consiste na justaposição de diferentes significações no mesmo veículo sígnico. O contraste entre diferentes qualidades percebidas no mesmo instante, desencadeia o riso. Gil Vicente sabia-o muito bem: as primeiras edições dos seus autos transportam no frontispício o mesmo adágio latino: ridendo castigat mores. Rindo se criticam os costumes. Fernão Mendes Pinto sabia-o também. A sua Peregrinação tem tanto de verdadeiro como de exagerado, trazendo ao de cima a oposição funda entre a nobreza de caráter e a pobreza humana.
Fernão Mendes Pinto desceu o atlântico. Almeida Garrett subiu a corrente do Rio Tejo. Ambos riram, e ambos mostraram o que aprenderam. Viviane subiu o Atlântico, da Foz do Guaíba, à foz do Tejo. Aqui, de modo quotidiano, quase ocasional, encontrou o contraste da ironia funda destas viagens passadas e presentes, dos barcos que atravessaram mares aos barcos que atravessam rios. Encontrou a bordo de um ‘cacilheiro’ o som de vozes familiares mas desconhecidas, que alheias à grandeza do rio, falavam o crioulo das terras de Cabo Verde.
6. De mundo na mão, a olhar Porto Brandão
No cais de Lisboa, a caminho de Belém, sítio de largadas e de velhos, de heróis de pedra olhando fixamente Porto Brandão para sempre, na retórica do Estado Novo, nas formas do Padrão dos Descobrimentos. Com caravelas na mão, esferas armilares, mundos, livros e missões no seu destino. Neste cais, em local esquecido, mas perto, o Memorial à guerra do Ultramar, para recordar os mortos e feridos que há bem pouco tempo se empenharam numa guerra entre irmãos, a guerra colonial.
7. Revessas
São outros regressos, outros refluxos, outras revessas. A proposta de Viviane Gueller é simples: reencontrar os discursos, apontar aos humanos que, destinos à parte, esta viagem é antiga e vale um sentido, que é tão grande quanto pequeno, onde o rio se faz mar, ou não, como o rio da minha aldeia (Alberto Caeiro). Que, do lado de cá, do lado dos humanos, nos igualamos permanentemente, entre a noite e o riso, de Nuno Bragança (1969), no reencontro sem fim.
Referências
Almeida-Garrett, José de (1846) Viagens na minha Terra. Lisboa: Typographia da Gazeta dos Tribunaes. URL: http://purl.pt/55/4/
Bragança, Nuno (1969) A noite e o riso. Lisboa: Moraes.
Caeiro, Alberto [Fernando pessoa] (1946) “XX – O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia” In O Guardador de Rebanhos: Poemas de Alberto Caeiro. Lisboa: Ática.
Fernão Mendes Pinto (1983) Peregrinação. Transcrição de Adolfo Casais Monteiro. Col. Biblioteca de autores portugueses. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda.
Maistre, Xavier de (/1794) Voyage autour de ma chambre. Paris: Flamarion.
Vicente, Gil (/1518) Auto da Barca do Inferno. Biblioteca Digital. Porto: Porto Editora.
João Paulo Queiroz