entre — exposição de tiago santos
15 > 29 JANEIRO 2020 I GALERIA BELAS-ARTES
Inaugura no dia 15 de janeiro de 2020, às 18h00, na Galeria das Belas-Artes, a exposição Entre de Tiago Santos, com curadoria de Isabel Sabino. A exposição ficará patente até 29 de janeiro de 2020.
horário schedule
2ª a 6ª › 11h–19h
monday to friday › 11am to 7pm
Informamos que este evento poderá ser registado e posteriormente divulgado nos meios de comunicação da instituição através de fotografia e vídeo.
Entre
Todo o homem, patrão a bordo depois de Deus.
Todo o homem, prisioneiro no fundo do porão.
E navio ao mesmo tempo que marinheiro.
Marguerite Yourcenar[1]
No estúdio do jovem artista Tiago Santos (Oliveira de Azeméis, 1996), ocorre-me esta palavra ‘entre’ quando me vejo perante obras em processo, materiais espalhados no chão e mesas, o cheiro e a luz próprios do ambiente de trabalho de atelier que é sempre familiar e que, ao mesmo tempo, se faz estranho.
Estou aqui ‘entre’ tarefas, no meu próprio tempo, mas sobretudo entre objetos, entre representações, entre vestígios de realidades, entre gestos de procura, entre obras, entre palavras e, novamente, entre tempos (entre gerações e entre décadas e séculos de obras, antes e depois de mim, antes e depois deste jovem artista). Não é, contudo, um estar de passagem. Sinto-me no lugar certo à hora certa. O resto agora não conta.
Aliás, mal acabo de chegar pelo meio da chuva miudinha que cai lá fora, o Tiago acolhe-me e diz: entre. E, no interior, vejo pela janela larga a manhã cinzenta e molhada, cujo clima cromático continua nos papéis, cá dentro.
Entre espaços, infiltra-se portanto o olhar.
Entre janelas e paredes há a luz que passa. Entre umas e outras, parece que a luz se fixa mais demoradamente em certas matérias, sejam elas da realidade ou decantadas nas obras. Mesmo aquela luz branca que, no contraste através de vidros aparentes ou quadros, me cega numa certa penumbra acolhedora, acaba por se render ao seu destino, como por exemplo nos casos em que bate e foge de imediato, reflectida, repelida. Esses são os objetos que brilham na sedução da comunicação e da beleza consumível. Aqui rareiam.
Outros são os das matérias cujas superfícies, humildes como corpos baços, absorvem a luz e guardam-na na escuridão, em réstias desmultiplicadas no interior das células, prontas a iluminarem-se ao toque, de dentro para fora.
Poderíamos pensar que é algo químico, algo que resulta da mistura e respiração dos materiais aqui presentes neste laboratório informalmente obsessivo e parcialmente negro: papel, carvão, grafite, tintas acrílicas, betumes, diluentes, etc. Mas, na verdade, é a natureza dos gestos que altera a pele destas coisas aqui visíveis, acende o que elas escondem e cria essa relação inesperada com a luz, essa reação em potência. Neste lugar (ocorre-nos um outro que não este, como uma distante caverna, galeria subterrânea, porão de navio) a luz não se vislumbra por ser reflectida; é imanente, mas precisa de ser revelada.
É o que aqui se passa, suspeito, no estúdio e em cada obra: superfícies intensa e insistentemente tocadas, manuseadas, pisadas, pelos olhos que têm dedos e pelos dedos que têm penas, lábios, dentes e máquinas caprichosas, são propensas a revelarem a sua força expressiva, a sua verdade. É com a sua erosão no labor que se ilumina o brilho baço e quente do sangue dentro do corpo, do carvão sobre o papel, do alcatrão da estrada escura da viagem. E não se gasta tal negrume de tanto olhar, pelo contrário, de tanto olhar nele fulgem centelhas e, com elas, vemos algo. Entre olhares, acontece um facto: uma obra que se funde com um espaço e que dele faz por sair.
Trata-se, portanto, de um acontecimento, pois é isso uma obra, um labor que produz resultados, um trabalho inclusive como Marx repensou e cujo conceito fábulas de cigarras e formigas servem para debater até hoje. Todavia, também no caso de Tiago Santos a obra não é apenas nem a labuta nem o que ela faz, o objeto desenho ou o objeto pintura. A obra é, sobretudo, o aroma que fica, o sabor/saber que permanece, entre olhares. Por isso é que olhar (contemplar devidamente) é trabalho, dá trabalho, produz experiência e obra.
Entre o papel e a tela, sem referir agora o espaço real, o olhar desdobra-se e hesita. Pode supor-se que, aqui, é o papel que se instaura como arena prioritária, embora haja telas em curso. Dúctil e absorvente, o papel é a superfície que melhor guarda marcas, por imperceptíveis que pareçam, permitindo que formas “raptadas” da vida se tornem “matéria comungada com o papel” (aqui adaptando expressões do próprio artista que, não se furtando ao uso das palavras, respeita a sua rigidez possível). No seu caso, entre pintura, desenho e escrita, por vezes as diferenças perdem importância na necessidade e poder expressivo das passagens, tornando fútil e artificial qualquer separação.
Repetem-se, pois, gestos sobre chão, papel ou tela. Repetem-se letras e nascem palavras, repetem-se palavras e nascem poemas. Também aqui é de uma poética que se trata, de um movimento tão metafórico quanto generativo, pois há um gesto, mais outro e depois outro ainda e produzem marcas. Mas não é a sua simples soma que conta, se bem que essa soma interesse pela necessidade produtiva, isto é, para fazer nascer formas, figuras, espaços de diferentes naturezas sugeridos no plano: resultados mais ou menos estáveis ou efémeros. De novo, o que conta mesmo é o que acontece entre gestos, entre traços, entre manchas, quando acontece. E quando acontece, suspendem-se gestos, traços e manchas, antes de voltar a essa lida. O que acontece é no intervalo. Entre tudo o que se passa, passa-se algo. Entre (tanto).
Daí a imensa importância do tempo, da sua irregular velocidade, ora voraz, ora muito lento, para nos podermos dar verdadeiramente conta do presente. No presente é que acontece o que acontece. “Há que ser paciente”, diz também Tiago.
Entre um antes e um depois, há sempre o atelier, o espaço entre. No estúdio não há relógios adequados, porque é o lugar onde o tempo pulsa com o corpo, simplesmente: os relógios acertam-se com um corpo que faz. “Lugar visceral por natureza”, escreve o artista, referindo-se ao seu carácter orgânico, semi-informe, eventualmente sujo. Arena orgânica, quando invadida (profanada?) por matérias, memórias, imagens fotográficas, nela os gestos pictóricos vão sagrando uma dissecação devoradora, uma digestão lenta que procura transformação e renovação de formas usando também processos de destruição (sobreposição, apagamento, rasura, erosão, uma vez e mais outra e outra), podendo deixar pelo caminho ruínas de passagem. Mais do que lugar, o atelier é extensão do corpo do artista, dos seus gestos, da sua vontade face à resistência do mundo que ali ecoa.
Para a pintora Marlene Dumas, também a imagem referente é uma carga pesada e ela debate-se com a sua história, afirmando num certo momento que a sua arte “is situated between the pornographic tendency to reveal everything and the erotic inclination to hide what it’s all about.”[2]Aceder e facultar acesso ao desejo é o que, no fundo, alimenta o processo do fazer e da sua partilha, obrigando a um ritual combinado de controle e liberdade, como sabem navios e marinheiros: resistir entre ondas para navegar com elas.
Entre si – independentemente de poderem sugerir interiores e paisagens, de haver entre espaços figuras fantasmáticas que não sabemos se chegam ou partem, se o espaço é único ou abre representações dentro de representações, ecrãs ou coisas materiais, se as matérias se degradam ou renascem alquimicamente, ou se o seu ‘filme’ avança em câmara lenta ou vai fastbackward (porque tudo está de passagem) – cada obra é separada das que a antecedem, num processo que evita a serialidade. É que esta implica algum determinismo e, pelo contrário, parece interessar a Tiago Santos privilegiar a manutenção da atenção permanente, da lucidez que instaura uma lógica de ‘quadro’ ou ‘aparição’, se bem que não deixe de haver, contudo, recorrências e afinidades, elos possíveis que, sem fechar narrativas, possibilitam nexos de entendimento entre si.
Entre os limites da construção e da ruína, talvez por esse labor assim se confundam, nos resultados finais, os tempos do passado e do futuro. Talvez por isso também pouco interessem, frequentemente, esses resultados, rapidamente tornados caducos e nunca finais na voragem da procura da comunhão certa de tudo na matéria, como Tiago afirma quando procura pisar a sua própria sombra, ciente dos passos de Kiefer, Pedro Saraiva ou João Jacinto e identicamente implicado na consciência de Yourcenar sobre a erosão do tempo e da sua lenta capacidade de modelação.
“You can’t TAKE a painting, you MAKE a painting”[3], diz de novo Marlene Dumas, sobre esse fazer laborioso, ao que Tiago acrescenta: “pintar é uma submissão extrema”.
Passo a passo, Robert Walser e Xavier De Maistre precisaram de calcorrear muito chão para perderem de vista o caminho ou as paredes do quarto fechado. Com ambos, recorda-se que toda a criação artística requer um estranho jogo interior que apaga ou integra limites impostos, fazendo deles matéria para horizontes mais amplos e abrindo o discurso a partir da linguagem, a narrativa a partir da figura ou vulto que a forma.
Aqui, no estúdio de Tiago Santos e no que dele, entretanto nos chega a esta outra sala, entre interior e exterior, entre tecto, paredes e chão, neste tempo suspenso entre realidades, é preciso deixar que o olhar caminhe, gesticule, labore, para pisarmos a arena do artista e experimentarmos a sua transformação: como no voo de pássaro dos antigos, conjugamos na mobilidade do olhar diferentes, senão mesmo impossíveis, pontos de vista, ou seja, visões; ou como numa máquina do tempo, na ficção científica, atravessamos datas e horas; ou ainda, como no tapete voador que Xerazade inventou num dos seus contos para iludir a morte, vemo-nos pisar outra história.
E, então, também o artista regressa de novo àquele “(…) espaço de 10m2…uma vez lá, espera ser deixado em paz pela consciência para poder sonhar de uma maneira muito distante e, ao mesmo tempo próxima, de qualquer um de nós.”[4]
Isabel Sabino
28 de novembro de 2019
[1] “Blocos de apontamentos 1942-1948” [1942]. Peregrino e estrangeiro. Lisboa: Livros do Brasil, 1990, p. 147.
[2]DUMAS, Marlene. “Pornographic tendency” [1986]. Em Sweet Nothings. Notes and texts. London: Tate Publishing, 2015, p. 33.
[3] Marlene Dumas. “Miss Interpreted” [1992]. Em Sweet Nothings. Notes and texts. London: Tate Publishing, 2015, p. 64.
[4]Tiago Santos, excerto de um dos seus relatórios para as disciplinas finais de Pintura V e VI, FBAUL, 2018-19. Várias expressões entre aspas usadas no presente texto, quando não identificadas, são também oriundas desses relatórios.