dias a fio — exposição de João Paulo Queiroz no âmbito do 7º Congresso Internacional CSO’2016
21 MARÇO > 09 ABRIL I GALERIA FBAUL
Dias a fio é uma exposição individual de João Paulo Queiroz (Aveiro, 1966), na Galeria da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e é composta por 102 desenhos inéditos produzidos em 2015, a série que dá o título à exposição.
Uma das características mais interessantes desta série é, na verdade, tratar-se de uma subsérie de um corpo de trabalho vasto. Dias a fio (2015) surge no seguimento de um processo que João Paulo Queiroz tem vindo a desenvolver a partir da repetição da observação e representação de um mesmo lugar desde 2005. Durante os dez anos que medeiam o conjunto existente até hoje, João Paulo Queiroz produziu, durante um mês de Verão de cada ano, um conjunto de desenhos, com 21x21cm, nos Valinhos, em Fátima, num perímetro de cerca de 300 metros. Ao longo dos dez anos, poderíamos, naturalmente, esperar algumas mudanças no lugar, tendo em conta a velocidade dos dias intrínseca à sociedade contemporânea. Contudo, neste lugar, há uma serenidade testemunhada visualmente pela paisagem, ao longo dos vários conjuntos (como Perto de Ti, 2013 e Luz e Pó, 2014) que formam a série produzida ao longo de uma década.
Se pensarmos na arte contemporânea enquanto sistema social — uma ideia do sociólogo alemão Niklas Luhmann — situaremos a arte no domínio da percepção do mundo. E é precisamente de percepção do mundo que nos rodeia, no que nos é mais familiar mas também naquilo que nos surpreende e nos escapa — e a imensidão da natureza será a metáfora perfeita para o que entendemos como Sublime que admiramos mas que não alcançamos —, que este conjunto trata.
A natureza tem sido objecto de estudo, representação e interpretação ao longo da História da Arte, desde as pinturas pré-históricas até à fotografia de paisagem do Século XX. Num processo paulatino de observação e contemplação, João Paulo Queiroz explora, por um lado, os significados da percepção psicológica do espaço e do tempo e, por outro, as mudanças físicas, ora subtis
ora drásticas, inerentes a uma paisagem natural ao longo de um dia, de um mês e, pensando na série na sua totalidade, ao longo de dez anos.
Quando entramos na Galeria da Faculdade de Belas-Artes, tornamo-nos testemunhas das mudanças de uma paisagem entre 3 de agosto e 8 de setembro de 2015 como podemos ler na parte superior do desenho, escrito à mão também com o pastel de óleo. Mesmo que não tivéssemos quaisquer informações sobre a localização exacta destes desenhos, as oliveiras, as azinheiras e os sobreiros aqui representados deixam-nos adivinhar que foram feitos em Portugal.
As pedras de calcário e o conjunto de árvores são significativos nestes desenhos. Por um lado, a identidade das suas tipologias e espécies que as ligam, indubitavelmente, a Portugal e, igualmente relevante, a escolha das árvores mais difíceis de representar. A um primeiro olhar, vemos árvores, todas tratadas de modo igual. Contudo, sob um olhar mais atento, rapidamente percebemos que as árvores que aparecem aqui representadas — ora em primeiro plano, ora em grupos num plano mais afastado — e que foram escolhidas para serem desenhadas são, claramente desafiantes ao nível da técnica: troncos retorcidos, copas de árvores com recortes que só se deixam adivinhar perante o contraste com um céu em constante mutação, texturas impossíveis ao olho humano, nos seus detalhes e tonalidades infinitas. João Paulo Queiroz fala de “acalmar a natureza” e é disso que se trata: selecciona as árvores mais rebeldes e trata depois de serená-las, com o traço, para que as olhemos como árvores que são, no seu crescimento e movimentos lentos, e não como muitas vezes pensamos vê-las, humanizadas e à nossa semelhança, com troncos que nos lembram braços agitados.
A natureza, nesta subsérie de João Paulo Queiroz, apresenta-se mais como resultado de uma experiência interpretativa e vivencial do que como um argumento ou uma temática. Tal como as outras subséries que compõem a série, Dias a fio incide nos aspectos nos quais a natureza se sobrepõe a uma noção visual de paisagem e encontra uma união corporal com o ser humano. Muitas vezes, pensamos no trabalho do artista contemporâneo como um trabalho de atelier. Contudo, aqui, somos transportados para a realidade dos Impressionistas do Século XIX que pintavam ao ar livre e espontaneamente nos lugares que escolhiam em vez de num atelier a partir de estudos.
Cada um dos desenhos aqui apresentado foi produzido ao longo de um dia, independentemente das condições meteorológicas, desde o amanhecer ao entardecer, até ao ponto em que se torna impossível ver com nitidez, como o céu mas também os jogos de luz e de sombra nas árvores, na vegetação e nas pedras denunciam. Em alguns desenhos podemos ver que estaria prestes a chover e noutros, que estaria, de facto a chover (como o desenho “c” de 31 de Agosto). Outros desenhos revelam dias de muito sol e podemos adivinhar a dificuldade de manter os pastéis de óleo sem derreter antes de tocarem a superfície de papel (como o desenho “b” de 4 de Agosto ou o “c” de 8 de Agosto, nomeando apenas dois exemplos).
Num processo reminiscente do de Impressionistas como Paul Cézanne, em pinturas como L’avenue au Jas de Bouffan (c. 1874-75), a composição dos desenhos Dias a Fio é complexa, nas formas densas, na folhagem com diferentes tonalidades, nos recortes cuidados das copas das árvores, nos troncos dramáticos que aqui são serenados, e nos céus em constante mutação como vemos nos vários desenhos, de “a” a “f”, ao longo de cada dia.
A especificidade identitária da natureza, do campo, e das árvores que não teve toda a atenção nas representações de paisagem na História da Arte Portuguesa, é sujeita a um olhar analítico e detalhado de João Paulo Queiroz. Com um convite a uma imersão total na contemplação, o mundo que este olhar nos apresenta, assenta, contudo, tão paradoxal quanto conscientemente, mais do que na impressão subjectiva de um determinado lugar, no carácter inescapável da mudança inerente tanto à natureza como
ao ser humano.
Luísa Santos
(Gulbenkian Professor, Faculdade Ciências Humanas, Universidade Católica Portuguesa)