Cadernos artivistas: Livros de artista como proposta comunitária
08 > 19 JULHO I GALERIA
Cadernos artivistas: Livros de artista como proposta comunitária
A origem do projeto Cadernos Artivistas remonta a 2005, quando Teresa Eça[i], Emília Catarino e Anabela Lacerda, começaram a convidar amigos para participar e intervir plasticamente no que então designaram “livros colaborativos”. Mais tarde, estas três artistas e professoras portuguesas juntaram-se ao coletivo C3, sediado em Santiago de Compostela (Espanha), que já vinha a desenvolver ações em torno dos “livros de artista”. Alguns anos depois, mais precisamente em 2012, por ocasião da 11ª InSEA European Regional Conference, em Limassol (Chipre), esta iniciativa ganha folgo com um workshop dinamizado pelo grupo. Para esta ação, foram manufaturados 50 exemplares, pela oficina de encadernação devagar se encaderna longe, da associação ASSOL[ii]. Estes cadernos foram distribuídos pelos participantes, que os transportaram do Chipre para outras paisagens, onde foram manuseados por outras gentes, que neles registaram outros sentidos.
Assim, o que começou por ser uma iniciativa entre amigos e se transformou numa proposta apresentada a uma comunidade específica de professores, membros da InSEA, veio a transpôr continentes, transitando para contextos não formais e adquirindo um caráter interventivo.
Hoje, na sua terceira edição, este projeto conta com cerca de meia centena de dinamizadores espalhados pelo mundo, que trabalham em comunidades locais, compostas por pessoas de diferentes faixas etárias, com formações e contextos sociais e culturais bem diversificados. As exposições que decorrem desta prática, até ao momento, tiveram lugar em quinze países: Alemanha, Austrália, Brasil, Chile, China, Chipre, Espanha, Finlândia, França, Itália, Irão, Japão, México, Portugal e Uruguai. As últimas aconteceram em Portugal, país de arranque da terceira edição, e as próximas estão já agendadas para Espanha (Santiago de Compostela e Valência) e Brasil (Brasília). O volume de cadernos aumenta, não só de edição para edição, mas também de exposição para exposição. Como en el arte contemporáneo, los proyectos son narrativas que no tienen principio ni fin, son tránsitos de vida — espacios intermedios — que están continuamente transformándose y siendo. (Maria Jesus Agra Pardiñas, 2016)[iii].
O propósito é democratizar a prática artística de desenhar, pintar, rabiscar e registar, graficamente, ideias, pensamentos e sentimentos, em cadernos. Para além disso, também se pretende tornar esta prática colaborativa, algo pouco frequente no meio artístico, embora a história nos lembre alguns exemplos, como os expressionistas alemães, com a cadeia de cristal (1919)[iv] e os surrealistas franceses, com o cadavre exquis (1925)[v].
Porém, quer no contexto da prática artística, quer no contexto da prática docente, a ação conjunta de intervir/refletir sobre um mesmo objeto/tema e ser capaz de materializá-lo colaborativamente, seja em coisas, seja em palavras, ainda hoje não é comum. Reflexo disso é o ensino artístico, que continua a ser orientado para a procura de uma originalidade “pura”, mito que nos acompanha, pelo menos, desde o século XIX.[vi]
As questões que este projeto nos coloca já não passam pela possibilidade ou não de ensinar a arte, que inquietou Gustave Courbet (1819-1877) – Peut-on enseigner l’art? (1861)[vii], mas pela democratização do gesto de desenhar ou de nos expressarmos e comunicarmos visualmente, enquanto seres humanos que partilham experiências de vida, no seio da mesma comunidade, convergindo ou divergindo, do que é criado noutras, pois este projeto convida-nos também a pensar o local (os locais) no global.
Na era da globalização, da alienação mediática, da pós-verdade, da fast food cultural e das selfies enquanto exaltação do parecer que, cada vez mais, nos distancia, do ser, esta proposta convida-nos a di-vagar, no duplo sentido, isto é, ao vagar de um tempo a sós, com a folha de papel, e à divagação de uma linha que nela se espraia, em busca de sentidos múltiplos, através do gesto de uma mão que acompanha um pensamento desejavelmente divergente. De vagar e divagar são assim duas faces de um mesmo acto. Representam simultaneamente pausa/atenção e ação/divagação pois, como compreendia Lagoa Henriques (1923-2009), evocado por Ana Margarida Boavida (Portefólio de Didática das Artes Plásticas II, 2013): “o desenho é uma forma de atenção” e a atenção pode traduzir-se em olhar crítico e intervenção, sentido último deste projeto.
Assim, não é de estranhar que as preconizadoras, que já debatiam tradição e ruptura na educação artística formal e apresentavam projetos inovadores no contexto não formal[viii], pretendam, através das ações inerentes a este projeto e da investigação que delas decorre[ix], contribuir para viragens no modo como nos relacionamos, não só com a arte, mas também com a vida, num sentido mais dilatado.
No se trata de crear un mundo nuevo, significa sencillamente reapropiarte de tu vida, abrir una ventana, que tu vida signifique otra cosa hoy, ahora, en este momento. Sentimos la necesidad de resistir activamente para crear otra narrativa de educación. (…) Somos hacedores de sueños, de objetos, de ideas…Y hagámosnos visibles!!! La idea que subyace detrás de todo esto reside en el interés por un saber compartido, un saber que fluye en lo interdisciplinario, y que se construye con el reconocimiento y la participación de lo diverso, lo extraño, y con la colaboración de muchos… Los proyectos se enmarcan en modelos de investigación y formación en consonancia con los valores contemporáneos que el arte y la vida reclama. (Maria Jesus Agra Pardiñas, 2016).[x]
Cadernos artivistas, enquanto proposta de intervenção comunitária, coloca em causa os limites dos conceitos de autoria e identidade (individual e coletiva), ao mesmo tempo que evidencia temas/problemas comuns à arte e à vida contemporâneas, neles objeto de reflexão. Esta prática convida assim os participantes a um posicionamento político, com contornos mais passivos (de resistência) ou mais ativos (de intervenção), que se traduzem em registos de cariz abstrato e subjetivo ou crítico e interventivo, observáveis nos cadernos, com diferentes origens geográficas, locais e pessoais, que compõem esta exposição e podem ser folheados até 19 de julho, na Galeria da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Na próxima, esperamos contar com o vosso!
[i] Teresa Torres de Eça é presidente APECV (Associação Profesores de Expressão e Comunicação Visual) e presidente da InSEA (International Society for Education Through Art). Membro do C3, um grupo de educadores artísticos que visa a promoção de inter-ações ativistas, e do i2ADS (Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto), tem desenvolvido ações e investigação sobre narrativas visuais, media e media digitais, artes socialmente comprometidas, ativismo em educação artística, projetos transculturais e educação transdisciplinar. Para além disso, desenvolve ainda trabalho como artista visual, sendo conhecida como Teresa Torres ou TT.
[ii] ASSOL é uma associação, fundada a 22 de março de 1987, em Oliveira de Frades, que visa integrar pessoas com deficiência.
[iii] Agra Pardiñas (2016), Seminário Crearte, Viseu. In https://sharingsketchbooks.wordpress.com
[iv] A cadeia de cristal, movimento de contracultura, iniciado por Bruno Taut (1880-1938) e participado por 14 arquitetos/artistas, entre os quais Walter Gropius (1883-1969), Wassili Luckhardt (1889-1972) e Bernhard Scharoun (1893-1972), que consistiu numa corrente de cartas e desenhos de livre expressão.
[v] Jogo coletivo que implicava a partipação de vários artistas, à vez, na continuidade, mas também no desconhecimento, da intervenção dos outros. Em Portugal, os primeiros cadavres exquis surgem mais de duas décadas depois, com duas obras pictóricas emblemáticas, que geraram polémica na única exposição realizada pelo Grupo Surrealista de Lisboa (Atelier de António Pedro e António Dacosta, 19 e 31 de Janeiro de 1949): Quadro Colectivo (assim designado no catálogo), da autoria de António Domingues, Fernando Azevedo, António Pedro, Marcelino Vespeira e Moniz Pereira; e Cadavre exquis, da autoria de Fernando Azevedo e Marcelino Vespeira.
[vi] Martins, Catarina (2011). As narrativas do génio e da salvação : a invenção do olhar e a fabricação da mão educação e no ensino das artes visuais em Portugal (de finais de XVIII à primeira metade do século XX). Tese de Doutoramento em Educação, na especialidade de História da Educação, apresentada à Universidade de Lisboa, pelo Instituto da Educação.
http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/5733/1/ulsd062203_td_Catarina_Martins.pdf
[vii] Courbet, Gustave (1986[1861]). Peut-on enseigner l’art? Caen: L’Echoppe.
[viii] Eça, Teresa (2008). Educação artística em Portugal: entre a tradição e a ruptura. In Pós: 1 (1), p. 26 – 36, Belo Horizonte, maio 2008; Lopes, Emília; Torres, Teresa & Lacerda, Anabela (2002). Projecto Bate lavadeira bate. In Imaginar, 39, setembro 2002. http://www.apecv.pt/catalogo.php
[ix] Eça, Teresa (2015). Del arte por el arte a las artes comprometidas con la comunidades: Paradigmas actuales entre educación y artes. Comunicação. Congreso en Educación Artística 2015: Prospectivas, Centro Cultura de la Facultad de Artes, Universidad de Antioquia, Medellín, 7 a 9 outubro 2015. https://www.academia.edu/16275685/Del_arte_por_el_arte_a_las_artes_comprometidas_con_la_comunidades_Paradigmas_actuales_entre_educaci%C3%B3n_y_artes
Saldanha, Ângela; Eça, Teresa Torres de & Medina, Teresa (2015). ‘No Caminho para Casa’: ativismo na investigação artística. Revista Digital do LAV, Laboratório de Artes Visuais de Santa Marís, 8 (2), maio 2015, pp. 48-61,doi: 10.5902/1983734819864 https://periodicos.ufsm.br/revislav/article/download/19864/pdf
Eça Teresa Torres de & Barbero Franco, Ana María (2014). Creación de redes globales a través de acciones locales: Encuentros alternativos en la Educación Artística. In EARI Educación Artística: Revista de Investigación, 5, outubro 2014, pp. 170-186. ISSN: 1695-8403e-ISSN: 2254-7592 doi: 10.7203/eari.5.3777 https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/4860407.pdf
Eça, Teresa Torres de (2014). Making things happen through networks: Connecting arts educators to enhance collective knowledge in the field. In International Journal of Education through Art, vol. 10 (2), Intellect Limited, junho 2014, pp. 235-245. doi: 10.1386/eta.10.2.235_1
Eça, Teresa Torres de (2013). C3: ações, interações e acontecimentos: arte educadoras entre ativismo, arte e educação. In ETD Educação Temática Digital, 15 (3).Campinas, São Paulo: ETD, setembro-dezembro 2013, pp. 495-506, 2013. ISSN 1676-2592 doi: 10.20396/etd.v15i3.1268
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/etd/article/view/1268/1283
Eça, Teresa Torres & Agra Pardiñas, Maria Jesús & Trigo, Cristina (2012). Transforming practices and inquiry in-between arts, arts education and research. In International Journal of Education Through Art, vol. 8 (2), Intellect Limited, maio 2012, pp. 183-190, doi: 10.1386/eta.8.2.183_7
http://www.ingentaconnect.com/contentone/intellect/eta/2012/00000008/00000002/art00006?crawler=true
[x] Agra Pardiñas (2016), Seminário Crearte, Viseu. In https://sharingsketchbooks.wordpress.com