Optical Look – exposição de Américo Marcelino
14 JANEIRO > 11 FEVEREIRO I GALERIA FBAUL
Acerca da ‘visita’ aos desenhos experimentais de Américo Marcelino
Os desenhos apresentados por Américo Marcelino nesta exposição testemunham uma parte do conjunto de trabalhos desenvolvidos no âmbito da componente prática da sua tese de Doutoramento em Desenho, intitulada Da semelhança no Desenho; Representação e Dispositivos Ópticos em Imagens Desenhadas, e defendida, em 2012, na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.
Na sua totalidade, este conjunto inclui duzentos e oitenta e quatro desenhos organizados em três núcleos: “Camera obscura” (oitenta e seis registos de paisagem urbana e rural, objectos do quotidiano e retratos); “Camera lucida” (cento e catorze retratos) e “Espelho” (cento e dois auto-retratos).
Optical Look inclui sessenta desses desenhos subordinados à temática do retrato, e recorrendo à mediação de dois dispositivos ópticos: a câmara escura e a câmara clara. Pacientemente construídos pelos gestos do desenhador nas superfícies de papel que os acolhem – com uma escala dimensional média variando entre os 30×25 cm e os 70×50 cm –, pelo emprego de materiais diferenciados, que vão de riscadores secos: grafite, lápis de cor, marcadores, pedra negra, a materiais líquidos: tinta-da-china, aguarela etc., estes desenhos, em que a linha é o elemento dominante, e que Américo Marcelino designou por desenhos experimentais, constroem-se também a partir de um ‘léxico’:
Retrato – traço, descrição e exposição da aparência que se revela e oculta na ‘máscara’, entre a observação e a descoberta.
Pose – sempre à mesma distância, fixação do rosto e do corpo numa posição frontal e a três quartos, em grande plano e plano americano.
Modelo – corpo familiar, empático, cúmplice no fazer/representar e modelo interior que Américo Marcelino, concebe como réplica do seu universo.
Dispositivos ópticos – prescritores pré-fotográficos, geram distância e neutralidade na interação entre o olho, a mão, a mente e os instrumentos:
Camera obscura – da escuridão nasce a luz e a estrutura da imagem desenhada em dezasseis retratos;
Camera lucida – da luz nasce a luz e a estrutura da imagem desenhada em quarenta e quatro retratos.
É no compromisso destas duas construções – a que surge do fazer e a que emerge do léxico –que Américo Marcelino se revela um desenhador pragmático e paciente, como é nesse compromisso que os seus desenhos experimentais falam do seu autor e da sua empatia pelos seus modelos.
Pedro Saraiva
Lisboa, Janeiro 2015
Os desenhos aqui apresentados correspondem a uma parte dum trabalho mais amplo desenvolvido no meu doutoramento em Desenho, concluído em 2012 pela FBAUL.[1] Partindo da questão da semelhança no desenho e estando o enfoque centrado no domínio da representação visual e, mais especificamente, na pesquisa em torno das origens da relação entre arte e óptica, esta selecção centrada no tópico do retrato pareceu-me ser particularmente adequada para dar conta desse trabalho: retratar pelo desenho, (re)-presentar por traços — pour traits, portanto —, aquilo que, de uma forma mais imediata, pode ser mensurável por um juízo de semelhança.
Todos os desenhos agora expostos foram produzidos com o recurso a dois dispositivos ópticos que, num tempo passado, conheceram um uso tão peculiar quanto reservado na representação gráfica: a câmara obscura e a câmara lúcida. Assumem-se duplamente como um trabalho complementar, mas também primário, ao desenvolvimento explanado na componente escrita do doutoramento, dado que a experiência do desenho enquanto ferramenta de pesquisa e exercício de concretização prática de confronto de várias dimensões — teórica, conceptual, técnica, artística —, tinha forçosamente de estar incluída como metodologia central da investigação. A estratégia inicial foi a de experimentar, testar, ilustrar, reconstituir, refazer aquilo que efectivamente envolvia o acto de desenhar com um dispositivo óptico, um pouco na senda do que David Hockney havia já ensaiado no seu trabalho de 2001,[2] do qual a sua recorrente expressão “optical look” é aqui recuperada enquanto mote para estes desenhos. Desse diálogo e confronto foi possível experimentar e aprender diferentes processos criativos, questionar persistentes ideias adquiridas e, entre outras coisas, compreender o alcance da ideia de um “olhar do fotógrafo antes do aparecimento da fotografia”. São, pois, desenhos experimentais no sentido em que se revestem de um carácter empírico, de trabalho de campo aplicado a uma investigação em torno das questões sobre a captação na representação gráfica e a fixação de semelhanças. Mas apesar de prioritariamente as considerar como eminentemente experimentais, estas folhas não deixam, anda assim, de ter uma vertente que se autonomiza desse domínio, na medida em que a dimensão pessoal e autográfica acaba inevitavelmente por deixar a sua marca. Talvez essa dimensão se encontre algures no confronto da distância que oscila entre a visão objectiva centrada no “olho artificial” do dispositivo e o olhar subjectivo expresso na “mão” do desenhador; entre uma suposta aparência óptica e uma evidente marca autoral.
O desafio do retrato foi quase sempre proposto informalmente, muitas vezes de surpresa, como se de um instantâneo ou de um retrato à la minute se tratasse: ocupar a cadeira vazia que está à minha frente para fazer um desenho do que via. Para o efeito recorri quase sempre de forma não escrutinada às pessoas com que quotidianamente me cruzava: familiares, amigos e, sobretudo, os muitos alunos que gentilmente colaboraram com a sua pose, e aos quais presto aqui o meu tributo nesta exposição. Nesse desafio, os juízos de parecença e reconhecimento parecem encontrar a sua vocação mais diligente no exercício de comparação e avaliação da singularidade de um rosto, de uma expressão, de uma atitude. Esta particularidade do reconhecimento e da identificação — “este és tu… está parecido… ficou bem captado…” — é algo de trivial no exercício do desenho de observação, independentemente das premissas que o enquadrem; trivialidade que não deixa, contudo, de convocar sempre um fantasma que se impõe como uma projecção e que está inevitavelmente implicada nesse fascinante dispositivo de tradução e descrição do mundo por sinais sobre uma superfície que chamamos de representação; um fantasma de semelhança que, como um vórtice, associamos à figuração.
Américo Marcelino
Lisboa, 5 de Janeiro de 2015.
[1] MARCELINO, Américo. Da Semelhança no Desenho: Representação e Dispositivos Ópticos em Imagens Desenhadas. 2 Volumes. Lisboa: Tese de doutoramento em Belas-Artes (Desenho), Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, 2012.
[2] HOCKNEY, David. Secret Knowledge: Redescovering the Lost Techniques of the Old Masters. London: Thames & Hudson, 2001.