feci quod potui — medalha, moeda & objetos
12 > 27 SETEMBRO I GALERIA BELAS-ARTES
Inaugura no dia 12 de setembro, às 18h00, na Galeria das Belas-Artes, a exposição Feci quod potui — Medalha, moeda & objetos de José S. Teixeira, com curadoria de Andreia Pereira Ferreira. A exposição ficará patente até 27 de setembro.
Exposição integrada na 11ª edição do Bairro das Artes.
horário schedule
2ª a 6ª › 11h–19h
monday to friday › 11am to 7pm
Informamos que este evento poderá ser registado e posteriormente divulgado nos meios de comunicação da instituição através de fotografia e vídeo.
No início da década de 1990, uma imagem negativizada e de aparente malbarato da medalha, essa camada artística “menor” dita e redita pelavulgata, desaconselhava José Teixeira a uma abordagem mais ambiciosa. Instigado pelo Professor Helder Batista a integrar as aulas de Medalhística da FBAUL e o grupo Anverso/Reverso, toma a si a tarefa de contornar as dificuldades ínsitas ao desafio e opera a transformação necessária para uma resposta emocional à tentação. Arrancado ao seu meio e aos seus hábitos, é precipitado numa prova para a qual nada o predispusera e adentra-se no universo liliputiano das coisas pequeninas, que cabem na mão, que podem ser tomadas, sopesadas, e apreendidas num só golpe de vista, um universo povoado de formas potenciadas por um novo esforço conceptual, e apimentado q.b. por animadas controvérsias e presunções. A medalha acabaria por se tornar o lugar adequado, o lugar estratégico privilegiado, para a elaboração de um conhecimento sistemático, intrinsecamente transdisciplinar, que doravante se irá converter em profissão de fé. Nesta estrada para Damasco, o escultor será animado por uma consciência cada vez mais sólida e apurada sobre “o que é” e “o que não é” específico da medalha.
O batimento dialético que agita o conjunto de obras que compõem a exposição “José Teixeira – Feci quod potui: medalha, moeda & objetos”reveste-se das arestas estimulantes de um primeiro encontro e atesta a capacidade do escultor em hipostasiar incomensuráveis ordens de realidade, operadas na charneira que articula as duas e as três dimensões. Representa também uma aclaração decisiva da filiação da medalha no universo ubíquo da escultura, correlata à constituição de uma categoria socialmente distinta de escultores cada vez menos inclinados a levar em conta as regras firmadas pelo legado dos seus predecessores, e cada vez mais propensos a libertar a sua obra de toda e qualquer dependência, seja de censuras críticas ou de programas estéticos, seja de controlos académicos ou de encomenda, seja, no limite, de rotulações estanques e delimitações disciplinares restritivas, já que, por princípio, a medalha, à imagem de tantas manifestações artísticas periféricas, se insere por direito no contexto macroscópico da arte contemporânea – o seu tão desejado espaço Schengen.
Chamada a coligir notas capazes de traçar a cartografia desta exposição, aptas a exprimir os matizes do pensamento do autor, ou a indagar a possibilidade de existência de uma identidade de base subjacente às múltiplas e mutáveis expressões deste “povo fictício” – o modelo originário, o a priori das morfologias visíveis –, cedo esbarrei no embaraço de resvalar para as areias movediças de especulações supérfluas, parciais ou mesmo estéreis, trazendo à liça argumentações ásperas, cegueiras terminológicas e fervores ideológicos, birras e diatribes (entre outras idiossincrasias temperamentais),ou pior, considerações servis e condescendentes.
Prescindindo de uma desejável anamnese clínica, a tarefa foi literalmente sustentada por impressões e esfoliações, hipóteses mais imaginadas do que fundamentadas, sem qualquer valor normativo. Sintomas, no curso habitual das coisas, sem pretensão de desemaranhar o fundo alucinatório que a obra ímpar de José Teixeira condensa.
A perversidade de agrupar tamanha disparidade de propostas plásticas sem considerar os seus pormenores múltiplos ou as suas especificidades concretas, passaria por generalizar um aspeto isolado e fazê-lo passar por uma visão de conjunto, o que se traduziria, inevitavelmente, numa perda de amplitude analítica. Qualquer obra é autossuficiente e dispensa dissecações. Dissecar uma obra é fechá-la, despromovê-la ao estatuto de coisa, confinar a sua desejável “abertura”.
Mas eis-me, a contrapelo, munida do pente-dos-bichos, proposta a escrutinar o insondável inventário dos movimentos da alma alheia, buscando uma forma de cartografar a subjetividade e circunscrever o “terreno de combate” do escultor, as diferentes tonalidades do seu pensamento, numa qualquer arrumação sistemática ou tranquilização hierárquica que não violente o seu contexto.
Ataxonomia que anima as obras expostas foi determinada, em parte, por um certo princípio de procedência, que se justifica por considerarmos evocar uma sistematização do pensamento e do comportamento do escultor – a sua cadeia de custódia –, mas exalta também a sua capacidade de flutuar entre opostos, tornando-os operacionalmente compatíveis. Deste modo, a organização da exposição foi balizada pela diferenciação ou aproximação progressivas entre medalhas, moedas e objetos, cotejo necessário para joeirar as singularidades das hipóteses de trabalho, apostando numa distribuição por núcleos onde se perfilam qualidades formais, materiais, conceptuais e funcionais idênticas, eixos temáticos que consolidam, em uníssono, aquelas que são as linhas de investigação substanciais do escultor.
Uma consideração interna inclinar-me-ia a arriscaraquele que considero ser o traço diferencial da obra de José Teixeira e que reside numa reaproximação da medalha ao seu sintagma identitário. Não lhe apaga o potencial subversivo, mas retira-a do “reino universal da anomia”.
O fazer da medalha obedece a regras e reflete constrangimentos, supõe ações, tensões, resistências, mas o plano de trabalho de José Teixeira, preciso e enquadrado – resiste ao plop esquizofrénico da encomenda infundada –, dotado de uma envergadura de enorme subtileza semiótica, é também habitado por pontuais extravagâncias, as quais, por meio de ressaltos e ricochetes, infletem toda a conformação nativa da medalha numa inquietude moderna de vocação plural.
Lúcido, obstinado, autossuficiente e icástico, não persegue o “cliché da novidade” ou a “presunção de modernidade”, não receia a natureza binária do anverso e do reverso, não se verga à lógica da precipitação; compraz-se na sofisticação – numa quase obsessão pelo rigor –, cultiva o dom de “pensar poeticamente”, e anima‑o uma curiosidade especulativa que desemboca na livre perseguição do saber “inútil”. Não depõe armas, combate até à exaustão lógica todas as possibilidades, organiza-as em abcissas e ordenadas, em zonas intersticiais de exploração, em intervalos heurísticos; exalta o espírito militante da investigação científica, o pensamento crítico, o horizonte cívico; de mais a mais, a regra e a lei não excluem o díspar, e também o irónico, o anedótico, o insólito e o absurdo se instalam, um coeficiente de aleatório e de instável que conduz à tal “inquietante estranheza” proliferante em denotações e paradigmas.
José Teixeira encarna a qualidade de estar sempre prestes a ser seduzido pelos objetos, a capacidade de acolher o que é estranho e de assimilar a sua contingência e obscuridade, conferindo‑lhes valor de necessidade e legalidade.
Quando a um pensamento já por si disposto a distrair-se se apresenta uma bifurcação atrativa, um ramal, uma linha de desvio, “Eis um feliz encontro!”
Andreia Pereira