à superfície — aldeia mineira do lousal — catálogo
04.12.2021—29.01.2022 | MUSEU MINEIRO — CENTRO CIÊNCIA VIVA DO LOUSAL
Encontra-se disponível, em acesso aberto, o catálogo da exposição À SUPERFÍCIE, Aldeia Mineira do Lousal.
CATÁLOGO
A povoação mineira do Lousal, localizada no concelho de Grândola, distingue-se pela paisagem de cariz industrial e tem a sua história ligada à exploração da pirite desde os primeiros anos do século XX. O seu passado reflete-se hoje na memória de uma estrutura urbana marcada pela radical transformação da paisagem ao longo do tempo e na organização doutrinada do aglomerado residencial. A imagem urbana do Lousal está irremediavelmente marcada pelos projetos de crescimento e planeamento nos anos 50, num momento da história da mina caracterizado pelo forte incremento da extração com efeitos no crescimento do povoado, que em meados do século passado atingiu uma ocupação de mais de dois mil habitantes, entre os quais mais de mil eram operários mineiros. Aparato industrial no qual, como refere Paula Rodrigues, “o centro geossimbólico do quotidiano operário é a mina, o que quer dizer, a “esfera do trabalho”. Rodrigues acrescenta que no aparato industrial os bairros operários eram “dispersos pelo Lousal e sem acessos entre si que não os que resultam do calcorrear dos seus habitantes, feitos de bandas contínuas em que a frente de uma confina com as traseiras de outra e correspondem a ruas a que não se deu nome, une os bairros mineiros esse marco visual — a mina — que se vê de quase todos eles, e os curtos caminhos que nela desembocam”.
Este território sobre o qual nos propusemos trabalhar, é formado hoje, por conjuntos habitacionais fruto do planeamento urbano ideologizado pelo Estado Novo, que foi sendo reestruturado de acordo com a organização cadastral e a renovação geracional do lugar, desde o encerramento da mina que ocorreu em 1988. São espaços nos quais a situação social e económica, refletindo–se na qualidade do espaço público, foi exigindo intervenções multidimensionais com o intuito de manter uma estreita relação de vivências focadas num passado de extração industrial da pirite. No final do século XX, a Câmara Municipal de Grândola e a Fundação Fréderic Velge, proprietária do complexo através da empresa SAPEC, protocolaram um programa de revitalização urbana e patrimonial da povoação mineira, readequando um conjunto significativo de edifícios do complexo de modo a aproveitar as suas potencialidades turísticas e museológicas.
Hoje, através de entidades e organizações formais e não formais que atuam no terreno, trabalha-se na procura de soluções para atuar positivamente sobre uma realidade sociocultural e demográfica herdeira da atividade mineira secular. A população mineira está envelhecida o que vai acentuando a dificuldade em conseguir uma efetiva coesão social e identitária sobre o território. Confrontamo-nos com uma geração agora adulta que cresceu já com a mina encerrada e uma realidade em que os antigos mineiros na sua maioria muito envelhecidos, vão perdendo a capacidade de passar o legado do passado mineiro às novas gerações, com consequências negativas na produção social da imagem urbana. Vão-se perdendo gradualmente os elementos de leitura na paisagem que permitem ainda hoje, reconhecer no desenho urbano, um passado mineiro de forte cariz identitário. A paisagem urbana, é cada vez mais lida de forma fragmentada, fraturada pelos obstáculos ao desenvolvimento social e económico daquele lugar, facilmente reconhecidos na qualidade deficitária do espaço público entre bairros, na escassez de equipamentos públicos e nas poucas actividades económicas existentes no Lousal.
Foi em confronto com esta realidade que se estabeleceu um protocolo entre a Faculdade de Belas Artes e o Município de Grândola em 2017, para que, a partir de uma abordagem socialmente comprometida, se propusesse o desenvolvimento de um programa de arte pública no Lousal, que implicasse a chamada da comunidade e das entidades presentes no terreno para a programação e implementação de diversos projectos no Lousal.
Com o projecto À Superfície, que envolveu os estudantes finalistas da Licenciatura de Escultura, procurámos incentivar nos jovens artistas uma atitude socialmente desperta, contando com o apoio e participação direta e indireta de uma amostra populacional diversa e heterogénea. Por isso, investimos em contexto académico, num trabalho de leitura do ambiente urbano associado à valorização identitária do território através da arte na sua dimensão pública. Esta opção foi um fator importante para fomentar uma relação critica, criativa e positiva entre os artistas e o território sobre o qual trabalharam.
Tomámos como programa a preparação de um ciclo de acções baseadas numa metodologia artística assente no trinómio aplicado por Javier Maderuelo à investigação artística: análise-diagnóstico-projeto. Como defende: “cualquier “obra específica” realizada para un lugar concreto debe depender y responder a las condiciones que se desprenden del propio lugar en el que se ubicará y al que debe servir”.
Acrescenta que, para o desenvolvimento da investigação artística, no trabalho no terreno é fundamental estar desperto para sentir, analisar e registar. Um trabalho permanente de recolha e questionamento que se sintetiza numa tomada de consciência da realidade envolvente. Ou seja, estar disponível para:
a) visitar o lugar valorizando a experiência sensitiva. Seja ao nível do olhar, do tocar, do cheirar ou do caminhar; também, valorizar a capacidade de análise e leitura empíricas dos elementos socio-territoriais que compõem o ambiente natural ou urbano; e saber escolher, catalogar e categorizar os elementos de relevo que o constituem;
b) investigar em torno do lugar, pressupondo a pesquisa
e organização de documentação escrita e gráfica, que se pode substanciar em artigos, livros, imagens com referências históricas, literárias ou outras;
c) relacionar o observado e registado in situ com o pesquisado, e deste modo, estabelecer relações entre passado e presente, entre existente e inexistente, entre vazios e cheios, entre o humanizado e o desumanizado, entre o urbano e o natural, etc.
Concluindo, ter as ferramentas para elaborar um conjunto de propostas que pressuponham diferentes abordagens e linguagens, ao nível da observação, da análise e da criação, experimentadas ao nível da fotografia, do desenho, vídeo, construção, maquete ou quaisquer outros suportes considerados os apropriados para expressar uma ideia.
Esta metodologia de trabalho pressupôs que tudo aquilo que fosse sendo produzido, ou seja, desenhado, construído, gravado, observado ou registado, fizesse parte do corpo crítico da proposta de escultura, sendo a partilha desta informação um elemento constituinte de um projeto coletivo mais alargado de arte pública.
Na implementação do projecto, a área de intervenção foi dividida em zonas de trabalho, às quais se associaram os participantes, e deste modo, conseguimos agilizar o entrosamento e o trabalho de grupo, seja no terreno ou na Faculdade. Conseguimos o envolvimento dos participantes num processo contínuo de aprendizagem e formação na escultura, como um campo de experimentação e apropriação espacial, de construção de sentidos sobre o território e os modos de o viver nos nossos dias.
As obras presentes nesta mostra, trazem ao público uma reinterpretação do que poderão ser referências identitárias do passado mineiro da povoação. A exposição, constitui-se assim, como ferramenta pedagógica para o estudo da transmissão da memória coletiva e da diversidade de usos e apropriações do espaço público hoje. Apresentando hipóteses de diálogo entre a vertente física e imaterial, cultural e social no Lousal, garantindo novas formas de leitura do território através da arte.
Neste projecto contámos com o apoio da Câmara Municipal de Grândola, do Centro de Ciência Viva do Lousal, do Centro Comunitário do Lousal e da Junta de Freguesia de Azinheira de Barros e São Mamede de Sádão.
Sérgio Vicente
Coordenador da exposição