as faces de plotino — exposição de desenho de artur ramos
05 > 25 MAIO 2022 I GALERIA BELAS-ARTES
Inaugura no dia 5 de maio de 2022, às 18h00, na Galeria da Faculdade de Belas-Artes a exposição As Faces de Plotino, de Artur Ramos.
A exposição ficará patente até 25 de maio.
Horário: 2ª a sábado das 11h00 às 19h00
Este evento é passível de ser fotografado e filmado e posteriormente divulgado publicamente.
Entre o Mito e a História
Pergunte-se livremente:
Que desenhos são estes? De que tratam? Qual a sua origem? Para onde olham?
E leia-se o início do poema Ulisses, de Fernando Pessoa:
O mytho é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mytho brilhante e mudo —
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Houve alguém que ousou escrever sobre as origens, um tempo anterior ao nosso e, por isso mesmo, arriscou-se por territórios desconhecidos. Não sabemos exatamente quem foi, mas conhecemos os textos que chegaram até nós e a que povo pertenceram, à tribo de Judá, com mentalidade semita e herança cultural mesopotâmica. Os textos, esses, são famosos e ficaram organizados em cinquenta capítulos num pequeno livro de setenta e quatro páginas chamado Génesis, o primeiro da bíblia. É lá que encontramos várias narrativas corajosas sobre os tempos míticos em que “o nada é tudo”.
Os textos que sobreviveram aos séculos não são exatamente os originais, mas cópias de cópias de cópias. Umas feitas por observação direta, outras por narrativa oral. A sua história aproxima-se à do desenho. Não apenas porque se desenharam caracteres hebraicos, mas pela importância que ganharam nas sociedades. São mitos sobre as origens, olham para trás, para um lugar que os filósofos gregos chamaram de ἀρχή (Arché), ou seja, o momento do fundamento, o lugar de onde tudo deriva. Contudo, se o texto de Plínio sobre a origem do Desenho data do século I d.C., o dos Génesis agrega tradições que remontam ao século XIII a.C. e vão até ao V da mesma era. São textos respeitáveis, impressionantes e incontornáveis. Precisamos deles para nos lembrarmos que o nosso tempo não é o Tempo. As suas narrativas querem ir mais longe do que a vista alcança e ser mais do que as palavras conseguem dizer.
Os desenhos de Artur Ramos parecem apontar para esse lugar das origens não ficando exatamente lá. Enraizam-se na Arché, no fundamento unificador, nas bases não só do desenho mas também da humanidade. São rostos plausíveis, reconhecíveis, universais, intemporais. E sobre essa linha mais extensa que a nossa finitude, o autor bíblico também se debruçou, socorrendo-se de um artifício narrativo para se referir à intemporalidade: o longo tempo de vida dos patriarcas. Passo a explicar, se as divindades eram eternas e a humanidade finita, de condição mortal, teria então de existir uma transição entre esse tempo mitológico das origens e o tempo presente. Entram aqui em cena as figuras dos patriarcas que, não sendo eternos como os deuses, vivem mais que a restante humanidade. Têm um tempo único e ampliado que atinge séculos, mas que não deixa de ser intermédio e finito. Preenchem um espaço de transição entre o Mito e a História, lembrando também uma das necessidades eternas do desenho, a transição entre o claro e o escuro.
Ainda quanto à intemporalidade, valeria a pena indagar: qual o tempo de vida de um desenho? Não só de sobrevivência material, mas também conceptual. Interessante esta questão, mas sem espaço nesta reflexão. Coloque-se então outra de aparente inutilidade e mais curta resolução: pode o desenho apelar aos territórios míticos? Assumamos por breves momentos que os desenhos de Artur Ramos se referem aos patriarcas bíblicos. Que transição entre os tempos remotos passados e a contemporaneidade queremos ter? A pergunta que faziam aos descendentes dos patriarcas era simples: «quem é o vosso Deus?» E a resposta era ainda mais simples: «É o Deus do meu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacob.» (Vaz, 1999, p. 128). E isto prevaleceu durante séculos, marcando ainda hoje a nossa herança cultural e social de um Deus único que nos coloca a todos como numa linhagem familiar. Se as figuras que Artur Ramos desenhou apelarem aos patriarcas, então elas são um convite a pensar o nosso tempo a cem, duzentos, trezentos ou mesmo novecentos anos, o tempo que o narrador bíblico ousou escrever como referência temporal a quem pisa territórios fundamentais, a Arché. Talvez hoje estejamos demasiado presos a viver o momento, o carpe diem de origem romana e pouco preocupados com um tempo maior que o nosso, o da mente semita mesopotâmica que atravessa gerações sem perder a linhagem.
Voltemos a Fernando Pessoa e ao último verso do poema Nevoeiro:
Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro…
Mário Linhares
Abril, 2022
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Pessoa, F. (2020). Mensagem. Porto, Portugal: Book Cover Editora (original publicado em 1934)
Vaz, A. (1999). A imagem do Deus de Israel. In H. N. Galvão (Org.), Em Nome de Deus Pai (pp. 105-190). Edições Didaskalia