lançamento da revista arteteoria nº1/ll série
05 DEZEMBRO > 18H30 I LINHA DE SOMBRA LIVRARIA, CINEMATECA
Com este número duplo, correspondente aos números 18/19, a revista Arteteoria inicia a sua II Série. Fundada no ano 2000, em articulação com o mestrado de Teorias da Arte da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, e sob a direcção do Professor Catedrático José Fernandes Pereira (1953-2012), foi dirigida, entre 2009 e 2017, pela Profª. Doutora Maria João Ortigão e pelo Prof. Doutor Eduardo Duarte. A partir do caminho percorrido, a revista Arteteoria procura hoje a sua acreditação junto dos repertórios de investigação, tendo procedido, para o efeito, à constituição de um Conselho Científico, à revisão duplamente cega por pares (double blind peer review), e à adopção das normas recomendadas de edição e publicação, tendo em vista a sua indexação em bases de dados internacionais.
Neste número alargámos também o âmbito da revista ao Brasil, seja em termos de co-direcção seja em termos de colaboradores, iniciando um desejável e progressivo processo de internacionalização, que pretende incorporar colaborações de outros países da Europa e da América. Em termos de estrutura, e para além da consagração da figura do Editor, externo à Direcção, a revista divide-se em duas partes: um corpo principal, que recolhe os artigos respeitantes ao tema, ou dossier, seleccionados para cada número, e uma segunda parte, intitulada Notas de Investigação, onde se promovem, divulgam, e incentivam os trabalhos de investigadores mais jovens, no âmbito de mestrados, doutoramentos e pós-doutoramentos, vinculados ao CIEBA (Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes), ou a outros centros e institutos de investigação.
Aproveitando o centenário, ocorrido em 2017, da Revolução Russa de Outubro de 1917, constituiu-se ensejo da Direcção celebrar a efeméride, e particularmente o surgimento das vanguardas que anteciparam a revolução política, e nela se desenvolveram, sem esquecer, naturalmente, o cerceamento a que foram mais tarde sujeitas pelas opções estéticas e programáticas do regime então implantado, pese embora as implicações que uma outra noção de realismo, proposta pelos vanguardistas russos, acabaria por ter na arte da posteriormente constituída União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), mas também da Europa e do continente americano. Ainda assim, e tendo em conta o carácter disseminado das vanguardas, as propostas, entre outras, do futurismo, do construtivismo, do suprematismo e do formalismo russos, frutificaram muito para além das fronteiras onde surgiram, reconfigurando a arte ocidental, e não só, sendo que os seus efeitos ainda ecoam na arte contemporânea, seja pela sua sedimentação lenta, ou pela reavaliação que as neovanguardas fizeram desse legado. Para além das propostas estéticas propriamente ditas, e da pioneira noção de arte como praxis social, no quadro referencial das aspirações programáticas e ideológicas dos artistas na época, o reconhecimento do valor da criatividade humana, em termos vivenciais e ontológicos, não deixa de constituir, ainda hoje, motivo de uma profunda reflexão.
Num tempo, como o nosso, em que também a arte, a braços com o multiculturalismo estreito que o processo de globalização implantou, se vê convertida muitas vezes numa “marca”, mercadoria e “commodity” — e em que até a resistência política inerente ao acto criativo é frequentemente parodiada, ou rapidamente absorvida pelos fluxos das novas tendências estéticas, políticas e sociais, do chamado pós-capitalismo —, o espírito que animou a produção artística russa nas duas primeiras décadas do século XX é ainda hoje louvável exemplo de explosão criativa, pese embora a referida instrumentalização que o poder político fez dessa mesma produção, atenuando, ou extinguindo, na maioria das vezes, o contributo fecundo de artistas que encaravam a arte como uma outra possibilidade de regenerar a sociedade, através de um outro modo de ver, viver, e relacionar-se com o mundo.
O confronto dos valores da arte, na sua ontogénese, com os valores de mercado tem implicado frequentemente uma hegemonia dos segundos sobre os primeiros, ambos se confundindo, por vezes, numa voragem que alterou o próprio sistema da arte, como fora conhecido desde, pelo menos, o romantismo até às últimas décadas. Sem prejuízo do lícito valor de mercado, o valor da arte, assim como o valor da experiência estética — desde a fruição à própria possibilidade de afirmação de uma identidade individual e colectiva, construída a partir do mundo, ou mundos, possibilitados pela abertura da obra de arte —, são hoje motivo também de profunda reflexão. A necessidade desta reflexão, que tem surgido, com frequência, de modo tangencial, é tanto mais urgente quanto os valores de mercado se transformaram em valores absolutos da vida contemporânea; na verdade, há hoje escassos indícios de uma verdadeira e fundamentada crítica ao conflito entre os valores ontogenéticos da obra de arte e os valores de mercado, sendo que, quando essa crítica aflora, e dada a actual e cínica base alargada de consenso, rapidamente cai na suspeita de romântica ou marxista, procurando-se, de um modo não raras vezes frágil, do ponto de vista argumentativo, descredibilizá-la à partida.
Na verdade, a partir da experiência estética, a arte constitui-se abertura para um horizonte histórico, não enquanto conjunto ou soma de factos passados, mas possibilidade efectiva de um destino, já que, no modo compreensivo da obra de arte, se pode figurar, e refigurar, uma existência mais livre e, consequentemente, mais fraterna, transcendendo, em parte, as fronteiras do fenómeno designado por Arthur Danto de “mundo da arte”. Da exortação e do acolhimento iniciais à experimentação e ao imprevisto, que largamente caracterizaram as vanguardas russas, ficou consagrado o princípio de que o que se vê através da obra de arte se vê melhor, dada a sua natureza pluridimensional e aberta, através da qual cada ser humano pode construir e exercer uma subjectividade autêntica enquanto fundamento da própria existência. Neste contexto, o número duplo que agora apresentamos procurou, tanto quanto possível, problematizar e reflectir, dentro dos diversos paradigmas de investigação em arte, não apenas as diversas práticas e expressões artísticas (do cinema à pintura, da escultura à arquitectura, à curadoria, à educação artística, e à denominada arte pública), mas, também, a relação do então promissor papel emancipado da mulher com as revoluções estética e política russas.
É neste sentido que Alexei Bueno apresenta cerca de trinta filmes, realizados entre 1924 e 1948, e em cuja análise reflecte os aspectos da estética fílmica, o seu contexto histórico e ideológico, e a sua influência no Brasil em particular. De Helena de Freitas, reconhecida comissária e investigadora, e sob o fundo das duas últimas grandes exposições dedicadas pela Fundação Gulbenkian a Amadeo de Sousa-Cardoso, em Lisboa e Paris, publicamos o texto inédito de uma conferência, na qual retoma a biografia e a complexidade das possíveis relações da pintura do artista portugês com a arte russa, relações que poderão ter mitigado na sua obra a influência das vanguardas oriundas de França. Daniela Kern parte também do legado da revolução russa, e da acção pedagógica de Max Raphael no domínio da educação artística, para sublinhar a dimensão social da arte, dentro de uma nova proposta ideológica. Sandra Makoviecky e Luana Wedekin problematizam as novas concepções expográficas da arte pública, resultantes de outro entendimento da relação política do ser humano com a obra de arte, não deixando de reflectir acerca desse outro devir da arte em direcção ao cidadão no espaço público, a partir do confronto das novas estratégias curatoriais subjacentes às exposições “Rosa Azul” e à última exposição futurista “0.10”.
Afonso Medeiros reitera a necessidade de estudar a precedência das revoluções artísticas face à revolução política na Rússia no início do novecentismo; por outro lado, propõe-se analisar “o princípio ideogramático” como modus operandi das vanguardas e das neovanguardas, tanto pelos artistas russos como pelos poetas concretistas brasileiros, num espaço de criação artística que se estende dos Estados Unidos ao Japão. Paulo Simões Nunes estuda a articulação entre a tentativa de construção de uma nova sociedade, saída da revolução russa de Outubro, e o papel da arquitectura construtivista na edificação dessa mesma sociedade, a partir de uma nova reflexão sobre o realismo. A revolução tipográfica, lograda pelas vanguardas russas, a partir do eixo Moscovo-Berlim, é objecto da reflexão de Jorge dos Reis, na qual propõe uma “topografia da tipografia”, assumindo como marco histórico a obra teórica de Jan Tschichold.
Das relações entre as dinâmicas sociais e a escultura, no âmbito das vanguardas russas, ocupa-se João Castro Silva, assumindo como linha da investigação desse processo a “objectivação” da arte, e a progressiva partidarização da cultura, proposta por Lenine. Uma possível cartografia do percurso feminino no construtivismo russo é apresentada pela investigadora Joana Tomé, a partir das produções artísticas de Popova, Ekster e Stepanova, e nela analisa e situa o papel da mulher artista no próprio processo das vanguardas e da revolução política, concluindo que, à tentativa de emancipação efectiva da mulher artista, rapidamente se colocaram diversos obstáculos, legitimados por uma ideologia de Estado que teimou em manter uma hegemonia patriarcal. Perante as propostas estéticas e políticas soviéticas, Carlos Vidal faz a análise das contradições e afinidades do próprio conceito de vanguarda, na conexação com os realismos, e propõe, em simultâneo, uma leitura desses mesmos realismos, que se estenderam à Europa, aos Estados Unidos e ao México, como consequência da “porta aberta” pelas referidas vanguardas.
Na secção Notas de Investigação, publicamos um artigo acerca da pintura de Ana Mata, do cineasta e professor Eduardo Geada, uma apresentação documentada do Acervo de Fotografia da FBAUL, da autoria de Priscila Machado, com nota introdutória de Luísa Arruda, e uma síntese retrospectiva dos cem anos das vanguardas russas, da autoria da professora e investigadora Isabel Nogueira. Por fim, Leonor Reis, aluna do Mestrado de Crítica, Curadoria e Teorias da Arte, da FBAUL, faz uma introdução à dimensão estética no pensamento de Emmanuel Levinas.
Fiel ao seu espírito inaugural, a revista Arteteoria abre-se agora às questões de um mundo globalizado, buscando o equilíbrio entre o trabalho consolidado de investigadores experientes e as novas propostas de jovens pesquisadores no domínio da investigação em arte.
Uma última nota de agradecimento é devida a todas as pessoas que contribuíram para este número duplo da revista Arteteoria, mas também ao CIEBA, à Presidência da FBAUL, e ao El Corte Inglés, Grandes Armazéns, nas pessoas do Prof. Doutor João Paulo Queiroz, Prof. Doutor Vítor dos Reis, e da Doutora Susana Santos, respectivamente, pelo apoio institucional.
José Carlos Pereira
António Vargas
Fiel ao seu espírito inaugural, a revista Arteteoria abre-se agora às questões de um mundo globalizado, buscando o equilíbrio entre o trabalho consolidado de investigadores experientes e as novas propostas de jovens pesquisadores no domínio da investigação em arte.
Uma última nota de agradecimento é devida a todas as pessoas que contribuíram para este número duplo da revista Arteteoria, mas também ao CIEBA, à Presidência da FBAUL, e ao El Corte Inglés, Grandes Armazéns, nas pessoas do Prof. Doutor João Paulo Queiróz, Prof. Doutor Vítor dos Reis, e da Doutora Susana Santos, respectivamente, pelo apoio institucional.